Por Aline P.
Já conhecemos a história: um jovem plebeu salva a donzela em perigo, vira homem de confiança do lorde, ganha espada e escudo e parte em busca da justiça contra inimigos do seu senhor, ganhando o respeito da comunidade e tornando-se um cavaleiro. A imagem canônica do cavaleiro medieval permeia nossos sonhos mais antigos e, em uma época de pobreza extrema, alta mortalidade, pestes, ignorância e intolerância, os cavaleiros davam à população a esperança de que a nobreza e a honra seriam recompensadas.
O período medieval ainda é romanceado, muitas vezes levando em pouca consideração que este período se passou em países e culturas diferentes, restringindo-se geralmente a pessoas e fatos ocorridos na atual Inglaterra. O leste europeu, no entanto, é uma das fontes mais ricas desta época, como demonstra o recente interesse de mídias de entretenimento baseados na cultura eslava, principalmente com o sucesso da série The Witcher. Kingdom Come: Deliverance põe à mesa uma interessante leitura de um período erroneamente visto como retrocesso e um se valento da história do leste através de um foco eslavo. Mas como a desenvolvedora tcheca Warhorse Studios se saiu na empreitada?
Narrativa
Em uma pequena vila no sul da Bohemia (atual Chéquia) no início do século XV, um ferreiro vive pacificamente com seu filho Henry e sua esposa. A sombra da guerra paira sobre a Bohemia quando o rei da Hungria e Croácia e futuro imperador do Sacro-Império Romano, Sigismundo, ameaça “manter a ordem” no reinado de seu irmão, o rei Venceslaus IV. Indiferente aos recentes acontecimentos, a vila é tomada e saqueada. Você consegue fugir como o jovem Henry, mas não sem antes ver sua família massacrada pelo exército inimigo.
Apesar do importante momento histórico, a história de Henry é simples, o que de forma alguma a torna ruim. O protagonista se adapta de acordo com as suas escolhas, podendo ser um bom garoto que se torna cavaleiro ou um serial killer que ganha cada vez mais poder. Encontrando-se em circunstâncias trágicas, Henry é moldado pela forma como você joga, criando situações únicas e ramificações na história, que são afetadas pelas suas decisões e pela forma como você joga. Kingdom Come: Deliverance te dá todas as oportunidades para conduzir a narrativa do seu jeito, mas para toda ação há uma reação, seja ela dinheiro perdido, quest perdida, reputação ou sua vida.
Independente do seu objetivo, o voice acting certamente convence que Henry é carismático, apesar da personalidade maleável, assim como a maioria dos NPCs, que tornam os diálogos imensos muito mais imersivos.
As quests são locais, incentivam a exploração e os diálogos, os personagens têm chance de se desenvolver e de te cativarem, ajustando o foco para as relações humanas e suas nuances em meio a um acontecimento muito maior que eles mesmos.
Mecânica
Kingdom Come: Deliverance desde o início se apresentou como um RPG realista, prometendo um jogo que funcionaria como uma espécie de “simulador medieval”. Se é perfeito ou não, o fato é que o jogo é muito bem-sucedido nessa imersão: suas armas e armadura ficam sujas e alteram a reação das pessoas. Suas armaduras com tecidos rasgam com o tempo. Você precisa descansar para repor as energias e precisa se alimentar. As batalhas podem resultar em cortes profundos e contusões, podendo levar à morte. Além disso, algumas quests possuem limite de tempo, mas com bom senso.
Além das necessidades básicas, dificultadas pelas precárias condições da época, as primeiras horas de jogo parecem estar em modo hard, uma vez que Henry não tem bens e é incapaz de realizar certas ações, uma vez que é um mero camponês. Para tornar a sua vida ainda mais difícil, não há salvamento rápido: só é possível salvar em certos locais ou utilizar uma poção rara que permite ao jogador salvar naquele instante.
Henry é um zé-ruela qualquer com quase nenhum conhecimento de batalhas, alquimia, equitação ou manutenção de armas. Antes de treinar, sequer é capaz de brandir uma espada direito, só aprendendo novas habilidades e se desenvolvendo através de treinamento e exploração.
Além disso, o jogo possui um vasto arsenal e opções de vestimentas, inclusive para o cavalo!
A mudança de Henry ao longo do jogo é nítida e lenta, alterando o comportamento do personagem e a reação das pessoas à sua volta, tornando a aprendizagem extremamente satisfatória.
Várias habilidades têm tem seu próprio mini game: a alquimia, por exemplo, é um sistema complexo de ações, com bases, tempo de cozimento, número de mexidas, o que torna a ação extremamente divertida, além de um incrível extra: para fazer a poção, é preciso encontrar e ler livros. Mas espera… HENRY NÃO SABE LER!
Com uma mecânica de surpreendente delicadeza, Henry vai aperfeiçoando aos poucos seu letramento e desenvolvendo novas habilidades. Assim, para ler, você precisa ir até um escriba que pacientemente te ensinará a compreender as letras e os escritos em latim, podendo, enfim, ler aquela receita complexa que você encontrou em uma caverna ou comprou pelo preço de um cavalo.
O estilo de combate é difícil, porém recompensador. É possível movimentar a espada/alabarda/etc para cinco lados diferentes e executar dois tipos de comando: golpear e perfurar. Porém, é por sua conta aprender os movimentos do inimigo e descobrir como quebrar sua defesa. Há também a skill de arco e flecha que é absurdamente difícil, especialmente por não possuir um ponto de mira.
O mapa é razoavelmente grande, assim como as cidades. Mas ao contrário de vários RPGs de mundo aberto, as cidades em Kingdom Come: Deliverance são complexas e cheias de atividades, com horários, quests e mercantes.
Um detalhe importante: o Fast Travel é feito em tempo real do jogo no lindo mapa que se assemelha a um tabuleiro, o que torna a viagem desgastante e perigosa.
Audiovisual
No quesito visual, o jogo peca em muito, mas acerta em outros aspectos.
Poderia ser exagero comparar os gráficos jogo com algo de 2006, mas a verdade é que Kingdom Come: Deliverance muitas vezes parece um mod muito bom de Elder Scrolls IV: Oblivion. As animações faciais são recorrentemente artificiais e os bugs são inúmeros: desde o “charmoso” bug da cabeça guilhotinada a desmontar do cavalo no lugar errado e ficar preso no cenário. Considerando a dificuldade em salvar o jogo, é frustrante perder uma ou mais horas de jogo por causa de um bug.
As cidades e as texturas das roupas e cenário são lindas, porém, demoram uma eternidade para carregar e você pode ficar alguns minutos jogando como se estivesse configurado para baixa resolução. O jogo crashou pelo menos duas vezes enquanto jogava, e em uma delas o computador simplesmente reiniciou, sem motivo aparente.
A título de informação, eis a configuração do meu PC, que deveria rodar “lisinho” um jogo desses:
Gigabyte Z170X-Gaming 7, Intel Core i7-6700K CPU @ 4.00GHz
NVIDIA GeForce GTX 1070
32,0 GB RAM
Disco de Armazenamento: Samsung SSD 850 EVO 250GB
Apesar dos pesares, os detalhes das armas, armaduras e roupas são excelentes. É possível ver a pesquisa e a dedicação em mostrar o máximo de realismo nos defeitos das roupas, nas manchas das armas e na sujeira do protagonista após uma longa viagem ou batalha intensa.
Os ambientes são lindos (quando terminam de carregar). As cidades são dinâmicas e vivas, dificilmente você encontrará os mesmos NPCs exatamente no mesmo lugar o tempo todo. Eles dormem, comem, passeiam, vivem independentemente de você e são afetados por suas ações.
A trilha sonora consiste, obviamente, de músicas da época e efeitos sonoros de espadas, andar de armaduras e galope de cavalos. Certamente não é um The Witcher 3, mas consegue criar um ambiente imersivo. Detalhe para o pack de som HD disponível para download gratuito na loja.
Conclusão
Sendo honesta: o jogo tem vários problemas gráficos, o que é definitivamente irritante e decepcionante.
Apesar das questões polêmicas defendidas por um dos realizadores do jogo, Kingdom Come: Deliverance apresenta algo que falta a muitas desenvolvedoras dessa geração que tem muito a dizer e pouco a mostrar: um bom jogo que não tenta ser mais do que aquilo que é. E ponto.
O jogo tem uma história simples, porém efetiva. A jogabilidade do combate é diferente de quase tudo que você já viu. A ambientação histórica é muito bem-feita, mas não é uma pesquisa científica antropológica de história (assim como qualquer outro jogo existente). O mundo aberto é do tamanho apropriado para um time pequeno de desenvolvedores.Enfim, Kingdom Come: Deliverance não tenta ir além daquilo que parece: um RPG sobre um jovem cavaleiro medieval.
Este jogo é para você, viúvo de Witcher 3, que está pacientemente aguardando notícias sobre o próximo Elder Scrolls, não gosta dos recentes lançamentos de RPGs isométricos, mas quer um RPG de raiz para passar o tempo.
NOTA
Narrativa: 9,0
Mecânica: 9,0
Audiovisual: 7,0
NOTA FINAL: 8,3
Aline – É formada em Direito e estuda Biblioteconomia. Gosta de gatinhos, ficção científica, sarcasmo e charmanders. Critica a Bioware, mas compra todas as porcarias lançadas por eles.